Refugiados de conflitos, irmãos sírios reconstroem vida na Cidade - Diário de Sorocaba
- maaatheusgomes
- 13 de abr. de 2016
- 5 min de leitura

Com um Português quase perfeito, o cabeleireiro Ferdi Shan pouco parece um gringo no País. A par da fala abrasileirada, o sírio, que já mora no Brasil há dois anos e meio, também se utiliza de certos vícios linguísticos típicos dos brasileiros, como “curti” e “tipo”. Também surpreende a maturidade e perseverança vinda de um jovem de 22 anos que, brinca ele, “tem cara de 30” e largou sua vida de classe média na Síria para viajar a um país desconhecido, fugindo do triste e trágico conflito no qual sua terra natal passa.
A história de Ferdi aproxima-se de muitas outras de refugiados do conflito vivido pela Síria desde março de 2011, quando começou uma série de protestos contra o governo de Bashar al Assad. Desde o início, a guerra civil já deixou 220 mil mortos e fez com que mais de quatro milhões de pessoas refugiassem-se em países vizinhos, segundo estimativas de organismos internacionais.
O Brasil é a principal rota dos refugiados na América, principalmente por causa de um programa que facilitou a concessão de vistos para 2.077 sírios, que receberam status de refugiados do governo brasileiro de 2011 até agosto do ano passado, de acordo com dados do Comitê Nacional para os Refugiados.
Há cinco anos, quando decidiram fugir da Síria, Ferdi, seu irmão, Abod Shan, 25 anos, e um primo, mudaram-se para a Jordânia, onde moraram por dois anos e meio e tiveram dificuldades para se fixar. “A gente gostava da Jordânia porque a cultura era próxima da nossa, mas uma coisa ruim de lá era que as pessoas eram mais fechadas”, conta o cabeleireiro, que, após a má experiência no país vizinho, começou uma pesquisa para descobrir um novo lugar para morar.
A guerra civil que explodiu no país desde 2011 foi o principal motivo que tirou Ferdi e seu irmão de lá. Na época, o Estado Islâmico ainda não tinha tornado-se um dos protagonistas do conflito que envolve governo, civis e milícias. “Saí no começo da guerra, ainda não tinha religião no meio, não tinha nada disso. O povo só estava querendo tirar o presidente”, conta Ferdi, que deixou a Síria após ter sido notificado para ingressar na guerra para defender o governo de Bashar al-Assad.
Entre o continente europeu e a Turquia, o Brasil acabou sendo escolhido pelos três sírios, apesar da resistência inicial dos irmãos. “A imagem do Brasil para fora é muito ruim, infelizmente”, conta Ferdi, que hesitou a princípio mudar-se para o País, mas acabou convencido pelo primo, que tinha um amigo sorocabano com quem conversava pela internet. “A gente não queria nada de ajuda dele, só queríamos saber se o País era um lugar bom para morar”, explica o cabeleireiro.
Com a ajuda desse amigo, que lhes ofereceu abrigo nos primeiros meses de Brasil, Ferdi, Abodi e o primo vieram para cá. Ferdi conta que a primeira diferença que viu no País foi o clima. “Quando saí da Jordânia, estava -3°C e quando cheguei aqui, em Guarulhos, estava 38°C. Passei mal”, conta Ferdi.
EMPREGO – Ferdi revela que sempre foi cabeleireiro, embora tivesse dificuldade de exercer a profissão na Síria. “Na nossa religião, não posso ser cabeleireiro porque o homem não pode tocar no cabelo da mulher”, explica.
Logo nos primeiros dias em Sorocaba, o sírio começou a procurar emprego, mesmo sem dominar o idioma local. “Sou daqueles caras que não consegue ficar sem trabalhar”, conta Ferdi, que, durante um passeio num hipermercado no Bairro Santa Rosália, interessou-se pelo salão de cabeleireiro do local e pediu para seu amigo ajudá-lo a conseguir um emprego ali.
Com muita insistência, Ferdi acabou conseguindo a oportunidade de trabalhar no salão, mas as dificuldades logo apareceram na entrevista de emprego. Recém-chegado ao Brasil e falando apenas inglês e árabe, Ferdi conta que teve de provar ao novo chefe que conseguiria se virar na comunicação com os clientes. “Ele me perguntou: ‘Como você vai atender cliente? ’, e eu disse que tentava. Foi difícil porque, às vezes, passava uma semana e eu só atendia a cinco clientes”, relata o cabeleireiro, que foi aprendendo a falar Português trabalhando - hoje, consegue manter a agenda sempre cheia. “Hoje, graças a Deus, não paro de trabalhar. O salão viu que para eles era um diferencial ter um estrangeiro”, conta orgulhoso.
PRECONCEITO – Mesmo que a Jordânia fosse um país mais próximo geográfica e culturalmente da Síria, Ferdi não se sentia à vontade lá. “Em outros países, eles tomam mais cuidado com a gente, acham que somos terroristas”, fala o cabeleireiro, que viu no Brasil um povo mais caloroso e aberto a imigrantes. “O povo brasileiro é muito legal. Eles tratam a gente superbem e querem ficar amigos”, diz Ferdi, que não sente preconceito por parte dos brasileiros. “Aqui é mais tranquilo. Até tem essas coisas de ‘homem-bomba’, mas eles fazem de um jeito mais de brincadeira.”
LIBERDADE – Quando questionado sobre o que mais lhe agrada no País, Ferdi é categórico. “Gosto muito de algo que tem aqui que até vocês não valorizam muito, que é a liberdade que não é em qualquer lugar que tem. O brasileiro tem muita liberdade no País e pode falar tudo o que ele quer. Ele tem voz aqui”, ressalta, contando que sequer pode exercer sua profissão na Síria como a faz no Brasil. “Lá é mais complicado por causa da religião e cultura diferente. Não pode misturar homem com mulher. Aqui tem mais liberdade, dá para fazer mais arte.”
E é essa liberdade um dos principais motivos que faz Ferdi desconsiderar a possibilidade de voltar para a Síria. “Claro que sinto falta do meu país, meus amigos... e minha família, mas, se eu for voltar para lá..., metade dos nossos amigos morreu e outra metade está na guerra ou fugiu. Não sinto vontade de voltar porque não vai ter o que fazer”, lamenta.
Para ele, mesmo que se consiga tirar Bashar al-Assad, a situação da Síria não mudará, já que o novo governante provavelmente será um religioso que pouco mudará as rígidas e ditatoriais leis do país. Ferdi também acredita que os costumes ligados à religião não mudarão.
O "novo sorocabano" conta, ainda, que tentou, sem sucesso, trazer os pais para o Brasil. Segundo Ferdi, eles têm mostrado resistência para se mudar para o País. “Eles têm uma imagem muito ruim do Brasil e têm medo de ir para um lugar que não conhecem, onde não se fala o idioma deles.” Ferdi salienta que, em relação à teimosia dos pais e o medo da guerra, evita preocupar-se para não prejudicar sua própria vida. “Já senti muito medo por eles. Já falei muito com eles: 'Sai daí, muda para outro país', mas eles não querem. A gente não pode fazer nada, não pode ficar preocupado. Tenho de cuidar do meu trabalho e da minha vida aqui.”
ESTADO ISLÂMICO – Mesmo tendo saído da Síria antes de o Estado Islâmico ter se tornado um dos principais protagonistas do conflito, Ferdi Shan é dono de uma opinião bem particular sobre o grupo radical. “Estado Islâmico era só uma máfia pequena, um grupo pequeno que a mídia deixa ele maior”, polemiza antes de comparar o grupo jihadistas com o Primeiro Comando da Capital (PCC), que, segundo ele, “todo mundo conhece, mas ninguém viu”. “Eles sabem que a mídia faz diferença, então filmam muito bem quando estão matando, quando estão queimando as pessoas porque passa na tevê.”
CASAMENTO E FILHOS – O amigo de Ferdi, que lhe ofereceu abrigo quando veio para o Brasil, também foi responsável pelo encontro do jovem sírio com a sorocabana Bárbara Duarte, sua atual mulher, com quem se casou sete meses depois.
Embora feliz com a vida em Sorocaba, o emprego e a mulher, Ferdi teme o futuro a ponto de não pensar em filhos. “Não sei o que vai acontecer comigo amanhã. Não quero ter um filho aqui e depois ter de ir para outro país”, conta o cabeleireiro reiterando, mais uma vez, que, para a Síria, ele não volta.
Disponível também no link: http://diariodesorocaba.com.br/noticia/245872
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