Essa cultura é de alguém? - Jornal Expresso
- maaatheusgomes
- 6 de jan. de 2017
- 7 min de leitura

Os rappers ficaram brancos, o turbante das africanas agora é tendência na Europa e até Iemanjá não é mais negra. A apropriação cultural é um crime ou consequência de uma sociedade globalizada?
A macarronada de domingo de Marcelo é italiana, mas o macarrão é chinês. Enquanto dirige seu carro alemão, ele ouve música no seu rádio chinês conectado ao aplicativo francês do seu Samsung sul-coreano por uma tecnologia que foi desenvolvida por um holandês. No som, a superstar americana do momento canta seu último hit, que foi escrita por um sueco e produzida por um DJ inglês. Seu programa esta noite é ver um filme que, embora seja americano, é estrelado por uma atriz argentina.
Viver na modernidade de um mundo globalizado pode ter nos tirado a capacidade de perceber a quantidade de culturas que comemos, vestimos, vemos e ouvimos todos os dias. E foram destes intercâmbios entre raças, valores e costumes que muitas outras culturas se originam (não é, Brasil?). Perceba a quantidade de países que apareceram na história acima, sem precisar citar por momento algum o fator “miscigenação” e a quantidade de povos e etnias que devem correr pelo sangue do nosso personagem fictício.
E é por causa desses “namoros” entre culturas e raças, somados à quantidade de invenções ou costumes de países diversos que somos expostos ou vivemos diariamente.que questões como a apropriação cultural passam, se não despercebidas, ignoradas como um mendigo que pede esmola na rua.
A apropriação cultural se dá quando elementos de uma cultura são adotados por indivíduos de um cultura diferente. Nisso se incluí o uso de acessórios, roupas, símbolos religiosos e manifestações artísticas. A questão se torna problemática quando a cultura que está sendo apropriada possui um histórico de marginalização e uma pessoa não pertencente a ela se passa a representá-lá.
Pelo fato da linha entre a apropriação e o intercâmbio cultural ser da mais tênue, talvez adicionar novos detalhes à história do inicio do texto consiga nos desenhar melhor essa diferença.
Marcelo, no longo do seu caminho para o cinema, se depara com uma negra vestindo um turbante. Embora seja advertido quase que simultaneamente pela sua mente, educada a não estereotipar, a palavra “macumbeira”, no sentido mais pejorativo que sua religião a agregou, surge na sua cabeça. A cantora que toca no seu som é branca e, embora nunca tenha pisado no Brooklyn, tem um flow na voz que lembra muitos artistas negros que ele ouviu por acaso a parar no canal de televisão BET - inteiramente dedicado ao hip hop -, no quarto do hotel que ficou na sua última viagem à Disney. Se não fosse aquela zapeada, ele jamais ligaria o som daquela cantora ao que ele viu nos clipes do canal americano.
Ao chegar ao cinema, ele encontra a garota que conheceu no Tinder e que irá acompanhá-lo no filme. Ela, também branca, é elogiada pelo sua roupa, cheia de motivos étnicos africanos, compradas na rede de fast fashion que decretou que essa era a última tendência em comerciais que, embora gravados na Africa, só tinham modelos brancas. Os negros até apareciam, mas eram praticamente parte do cenário.
O casal resolve assistir ao filme legendado por sugestão de Marcelo, que embora tenha dito outra coisa para a sua companhia, quis ver o longa no áudio original para se deliciar com aquele sotaque carregado delicioso e sexy da atriz argentina. Porém o jovem sai da sala de cinema decepcionado ao perceber que a voz da estrela, embora continue linda e marcante, perdeu aquela característica que a fez tão especial, vitima de múltiplas aulas com fonoaudiólogos contratados pelo estúdio cinematográfico que determinou que aquele estilo de voz não se enquadraria para o papel e seria pouco entendido pelo público americano.
Para a cineasta e historiadora Lilan Solá Santiago, professora na Faculdade de Comunicação, Artes e Design (FCAD) do CEUNSP, a apropriação cultural, embora tenha suas raízes fincadas em questões raciais, abrange outras esferas da nossa sociedade. “É uma realidade a partir das fricções culturais, mas o que determina ser benéfico ou não para os grupos que cedem elementos culturais, ou se apropriam deles, são questões relativas às esferas políticas, sociais e econômica.”
Não é possível definir quando a apropriação cultural começou a se tornar problemática, embora a globalização e o capitalismo sejam os exemplos mais sólidos de como culturas foram ressignificadas e deturpadas em prol de uma hegemonia branca. Há casos tão enraízados na nossa sociedade desde a Idade Média e que até hoje são tidas como definitivas. O exemplo mais clássico está na própria representação de um Jesus Cristo branco, de cabelos lisos, olhar doce e belo, que parecia ignorar muitas vezes a própria Bíblia, que o profetizou como um homem que “não tinha formosura nem beleza”(Isaías 53:2). Embora descobertas cientificas sobre a aparência média do povo judeu na época chegam a imagem de um Messias moreno e de cabelos crespos, a visão eurocêntrica se mantém intacta até hoje, seja em filmes ou nas apresentações anuais da “Paixão de Cristo”, em Nova Jerusalém (PE).
Para Lilian, as religiões são carregadas de apropriações culturais. “Elas se desenvolvem a partir das migrações, imigrações e conquistas militares”, conta a cineasta, que também cita representações de uma Iemanjá branca.
No fim de 2014, a grife brasileira Farm precisou se retratar após uma enxurrada de críticas nas redes sociais por divulgar no Instagram uma foto de uma modelo branca que representava Iemanjá. Alguns usuários da rede social acusaram a marca de ser racista por se apropriar da cultura africana em suas peças e não contratar modelos negras.
Engrossando a discussão, o rapper Emicida também comentou a foto e reforçou as críticas. "Usar a cultura afro como base de criação de elemento de autenticidade sempre. Empregar modelos negros nunca. Racismo brasileiro onde ninguém é e assim todos são livres para continuar sendo sem culpa. Triste, mas sem novidade. #ubuntu".

Grife Farm causou polêmica no Instagram ao retratar uma Iemanjá branca
“A cultura negra é popular, os negros que não são”
- B. Easy, poeta afro-americano, no Twitter
O sucesso da rapper australiana Iggy Azalea, que colocou a música Fancy no topo das paradas em 2014, pode ter sido uma surpresa ao considerarmos uma loira, no melhor estilo Barbie, rimando sobre o quão incrível é. Mas, se lembrarmos do atual quadro do hip-hop americano, a conquista de Iggy não se torna tão fancy assim.
Interprete da “música do verão” de 2013, Robin Thicke não apenas foi acusado de machismo devido ao teor da letra, mas também de se apropriar do estilo R&B e funk de Marvin Gaye em sua faixa Blurred Lines. O mesmo ano ficou marcado pela retorno do “queridinho do hip-hop”, Justin Timberlake, aos palcos com seu dual-álbum The 20/20 Experience, pelo sucesso da faixa The Monster de Eminem com a barbadiana Rihanna e pelo controverso vídeo de We Can’t Stop, em que Miley Cyrus fazia twerk cercada de mulheres-apetrechos negras.
Na edição de 2014 do Grammy Awards, a insperada vitória da dupla de rappers brancos Macklemore & Ryan Lewis e seu álbum The Heist, que tirou o premio do afro-americano Kendrick Lamar e seu aclamado Good Kid, M.A.A.D City, surpreendeu não só as expectativas dos críticos, como a própria dupla. Posteriormente à premiação, Macklemore divulgou no Instagram uma mensagem de texto enviada por ele para Lamar, onde lamentou ter sido o escolhido. “Você foi roubado. Eu queria que você tivesse ganhado. Você deveria”, escreveu.
Para o produtor de eventos Fernando Henri, administrador da página High as Shit, que celebra a cultura e o povo negro, o hip hop é uma arte de resistência, embora as rimas de alguns artistas já não sejam mais tão ferozes e questionadoras. “Um rapper não é obrigado a fazer letras apenas com cunho politico porque eles têm vivencia e é isso que legitimiza o trabalho deles”, afirma.
Iggy Azalea, Macklemore, Justin Timberlake, Eminem e até mesmo Elvis aparecem na faixa Fire Squad, do rapper americano J. Cole. Nos trechos da música, Cole teria acusado esses artistas de terem roubado o hip hop, assim como Elvis fez com o rock, que também é de origem negra e só se popularizou com quando foi cantada por um artista branco.
Quando perguntado sobre a faixa, J. Cole explicou que sua intenção na música não era atacar ninguém, mas fazer uma observação sobre como está a cultura atualmente. “Eu fui para a página de Jazz e fiquei tipo ‘Meu Deus!’. A página de Jazz do Itunes é 99,7% composta de gente branca. Tudo bem, todo mundo pode fazer a musica que quiser. É arte. Jazz é uma musica negra em sua origem. Mas não era só um tipo de música negra, foi o hip-hop da sua época. Era um estilo de música muito rebelde”, afirma o rapper.
Cole não acredita que isso seja culpa desses artistas, mas sim de como a indústria vê e prefere vender estes artistas. “Chegou um momento em que o sistema percebeu que pode vender essa pessoa branca muito mais facilmente’”, afirma o rapper. “E não é uma pessoa dizendo: ‘Ei, vamos vender esta pessoa ao invés desta’, É simplesmente porque esta pessoa se parece com a maioria da América. Eu avancei 20, 30 anos até agora para ver o hip hop se tornar completamente branco”, conclui.
“Chegou um momento em que o sistema percebeu que pode vender essa pessoa branca muito mais facilmente”
- J. Cole
Em entrevista à Carta Capital, o professor de Literatura Afro-Americana da Universidade do Colorado, Adam Bradley defende que o rap, embora seja uma criação dos negros, é uma cultura de fluxo. “A cultura rejeita aqueles que se proclamam os seus donos. Por isso, o rap tornou-se um idioma global cujas formas mudam sob a perspectiva de artistas de diversas cores e segundo as regiões onde se manifesta.”
Lilian Santiago partilha de uma opinião semelhante a J. Cole ao citar a axé music brasileira, que carrega em seu DNA a herança da cultura afro-brasileira, mas a maioria de seus ícones não fazem parte desae grupo. “Falar que a Margareth Menezes, única cantora negra entre os mais conhecidos representantes da axé music, leva vantagem pelo sucesso e divulgação do ritmo pela Claudia Leitte, é totalmente despropositado”, afirma.
Mas até que ponto podemos vincular uma cultura a uma raça? Embora brancos, artistas como Eminem e Claudia Leitte vieram de ciclos socioculturais onde o hip hop e o axé são fortes. Enquanto o americano viu nas rimas uma forma de expressar sua revolta com sua conturbada e pobre infância, a cantora, embora carioca, cresceu na Bahia onde o estilo afro-brasileiro é quase onipresente.
Lilian explica que ideias como a da pureza cultural são extremamente equivocadas, mas que a apropriação é uma problematica diretamente ligada à hegemonia branca. “O que acontece é que os negros são sub-representados em geral, quando falamos de imagens mercadológicas”, afirma. Para a cineasta, viver num país miscigenado como o nosso, mas que é representado na televisão por uma predominância assustadora de atores e apresentadores brancos, mostra uma faceta bem perversa da nossa sociedade. “Esses exemplos, independentemente da formação e da legitimidade histórica de cada um, servem como produtos a serem consumidos pelas grandes massas a partir de uma imagem majoritária economicamente, exatamente igual à imagem do Jesus branco”, conclui.
Texto produzido originalmente para a 2ª edição do jornal-laboratório "Expresso", que você pode conferir através do link: https://issuu.com/jornalexpressofcad/docs/jornal_expresso_final_5a4fabc1f1bd1a
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