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PERFIL: Salvadora Lopes - Livro "A Mulher e a Política: Relatos femininos sobre o poder"

  • Foto do escritor: maaatheusgomes
    maaatheusgomes
  • 20 de dez. de 2016
  • 8 min de leitura

Foto: Divulgação

“Ela era tão extraordinária que parecia mito, não verdade”, diz o fascinado historiador Carlos Carvalho Cavalheiro sobre uma figura que ele teve o prazer de biografar em um livro há mais de 15 anos. Trata-se de Salvadora Lopes Peres (1918-2006), uma líder operária comunista que, durante a década de 40, lutou arduamente a favor dos trabalhadores de Sorocaba e foi retratada no livro Salvadora!, publicado em 2001 com apoio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura (Linc). Além de narrar a marcante atuação de Salvadora como líder sindical, a obra traz um detalhado panorama da cidade do interior do estado de São Paulo que se tornou um importante polo da indústria têxtil, ganhando o apelido de “Manchester Paulista”.

A aproximação de Cavalheiro com a sindicalista aconteceu em 1995, enquanto ele era ainda um jovem estudante de História na Universidade de Sorocaba (Uniso) durante uma palestra da militante comunista Clara Charf sobre o ex-deputado Carlos Marighella, morto pelo regime militar. “Eu até então só a conhecia dos jornais”, relembra o historiador que não era o único que não sabia da incrível trajetória daquela pequena e frágil senhora que acompanhava a palestra junto aos estudantes. “Uma das coisas que me chamou bastante a atenção foi o fato de não ter nenhum material naquela época que escorasse todas as declarações que ela fazia em vida.”

Ao se aproximar da figura e começar a ouvir os incríveis relatos de sua trajetória, Carlos maravilhou-se ao mesmo tempo que se revoltou com fato de que não haver registros de toda aquela magnífica história. “Me pareceu que havia um interesse de: ‘Espera ela passar desta vida que a gente enterra a memória dela’”, recorda o historiador, que passou a construir uma amizade com uma Salvadora cada vez mais debilitada. “Isso me preocupou bastante porque ela poderia morrer e as pessoas não dariam o devido reconhecimento a ela”, lembra Cavalheiro que junto a sua biografada começou a reunir, em 2001, documentos e relatos, além de uma árdua pesquisa, que viriam a compor o livro. “Eu pesquisei em vários lugares até conseguir construir uma história que estivesse recheada desses documentos para dar um embasamento e provar que tudo o que ela dizia era verdade.”

Nascida em Avaré em uma família de espanhóis, Salvadora chegou a Sorocaba quando tinha apenas dois anos de idade junto aos pais Juan Lopes e Encarnación e mais seis irmãos, dos quais era a caçula. Situou-se na região do Além Ponte, zona leste da cidade, conhecido na época como o bairro dos espanhóis. Lá viviam milhares de imigrantes que haviam vindo da Europa quase que exclusivamente para substituir os escravos negros nas lavouras e, mais tarde, nas indústrias. Esta região, em que hoje localizam-se os bairros Barcelona, Vila Hortência, Parada do Alto, Colorau e Vila Assis, além de oferecer uma abundante força de trabalho, também ficou conhecida por concentrar uma grande quantidade de anarquistas e socialistas que lutavam por melhores condições de vida e salários.

Foi neste meio em que Salvadora cresceu e aprendeu ideais que nortearam toda sua vida. Como caçula, Salvadora desfrutou de mordomias que seus irmãos mais velhos não puderam aproveitar, como a oportunidade de estudar. Fez os dois primeiros anos do ensino primário na escola Senador Vergueiro, perto de sua casa, e os dois finais na escola Visconde de Porto Seguro, na região central da cidade, onde era a única aluna de família operária em sua turma.

O privilégio, no entanto, vinha cercado por limitações, como por exemplo, na sua própria alimentação no colégio. Para ter o que comer, sua mãe, preparava – muitas vezes aos prantos – um lanche simples para filha levar à escola que se constituía basicamente de pão e banha de porco polvilhada com açúcar para disfarçar o sabor. Encarnación chorava porque queria poder substituir o recheio por algo melhor, mas era logo consolada pela filha: “Não se preocupe, mãe, eu gosto desse lanche assim mesmo”.

O período de escola acabou durando pouco e Salvadora teve que deixar os estudos para trabalhar aos 10 anos. Nem mesmo o diploma conseguiu retirar, já que o mesmo era pago e sua família não poderia arcar com tal despesa. A partir daí, a pequena Salvadora passou a se meter nas fábricas têxteis, “aprendendo a dura vida de ser um operário num país que mal conhecida o capitalismo”, como narra Cavalheiro em seu livro.

A primeira greve que participou foi em 1930, aos 12 anos, quando o operariado da Fábrica Votorantim lutava pela redução da jornada de trabalho de dez para oito horas. Salvadora atuou formando parte do contingente de crianças-operárias que, orientadas pelo anarquista Ângelo Vial, se posicionaram no alto de um morro carregado de pedras para atacar os policiais em caso de avanço sobre os trabalhadores. A greve acabou com a derrota dos operários e a demissão de todos que não aceitariam trabalhar no período proposto, mas como uma grande experiência para a pequena, que viu se transformar em realidade todo o calor do movimento grevista que antes eram apenas narrativas.

Das incontáveis qualidades que Salvadora tinha atribuída à sua forte personalidade, a integridade é uma das que mais Carlos Carvalho Cavalheiro destaca. “Nesses aspectos de correção, honestidade, ética e idealismo, Salvadora foi a mesma até o fim da vida dela”, elogia o historiador, que ao longo do livro relata sua importante e incansável luta pelos direitos dos operários numa época em que os direitos trabalhistas de hoje eram praticamente utopias de comunistas e anarquistas. “Ela, na condição de operária e dependente do emprego, coloca o ideal acima desses medos.”

Em 1939, Salvadora, que estava entre os demitidos da greve de 1930, voltava a trabalhar na Votorantim, em grande parte graças à simpatia de Ângelo Vial, ex-líder operário e anarquista que se tornara gerente da indústria. Lá, ela começava a se destacar como uma importante liderança operária ao organizar comissões junto às demais trabalhadoras da fábrica em busca de melhores condições de trabalho que eram levadas diretamente a Vial. Certas vezes, preocupado com o futuro da jovem, o gerente a chama para uma conversa. Queria lhe alertar sobre os perigos de se envolver com a luta operária já que tivera triste experiência como líder da categoria no passado e tinha medo que o ônus desta posição, como perseguições, prisões e incompreensões, prejudicasse a jovem, que ele considerava como uma filha. “Você será martirizada, morrerá como Cristo e seus companheiros não a compreenderão”, disse o gerente. Salvadora, que até abriu mão da particularidade da conversa ao chamar as demais trabalhadoras para se dirigirem com ela à sala de Vial, deu a retórica que arrepia Cavalheiro até hoje. “É preferível morrer como Cristo a viver como Judas!”

Consolidada como uma forte liderança operária, o nome de Salvadora começou a chamar a atenção dos dirigentes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que a convidaram para se filiar à sigla – onde se tornou uma atuante militante em defesa dos interesses dos trabalhadores. “Ela dizia que entrou porque percebeu que no partido a luta dela poderia ser ampliada, já que dentro do sindicato você só poderia trabalhar em uma categoria, enquanto na legenda você poderia defender todas”, explica o historiador. Em 1947, ano de eleições municipais, o partido acabou tendo seu registro cassado e todos seus filiados se utilizaram da legenda do Partido Social Trabalhista (PST) para concorrer às prefeituras e câmaras municipais em todo o país. Salvadora estava entre eles e, ao lado de mais 14 colegas do partido, foi eleita a primeira vereadora de Sorocaba, com 261 votos, fazendo da legenda maioria na Casa, que na época dispunha de 30 cadeiras ante as vinte de hoje.

Apesar de já estar diplomada e pronta para assumir o cargo no dia 1º de janeiro de 1948, Salvadora e os companheiros do PCB foram cassados juntamente com o PST após decisão do Tribunal Regional Eleitoral de considerar inexistente o diretório daquele partido e invalidar todos os votos recebidos pelos nomes que compunham a legenda. Com isso, retirou-se do Legislativo a primeira mulher eleita vereadora de Sorocaba, dando sequência a uma triste tradição de exclusão feminina na Casa de Leis sorocabana que perdurou por 35 anos até 1982, quando Iara Bernardi (PT) e Diva Maria Prestes de Barros (PMDB) conseguiram se eleger.

Em 1950, Salvadora até tentaria se eleger novamente, desta vez como deputada, mas a perseguição e boicotes a impediram até de conseguir entregar as cédulas para votação, que na época eram distribuídas pelos próprios postulantes aos cargos. Já em 1952 a sindicalista foi expulsa do Partido Comunista por não concordar com as atitudes da legenda, diante das quais se opunha desde sua filiação. A posição oficial do partido foi acusá-la de traição, mas seu legado sobre a classe operária sorocabana afastou o adjetivo de seu nome perante os seus colegas trabalhadores. “Ela, na verdade, estava denunciando tudo o que o partido estava fazendo de errado, como se aliar a Ademar de Barros (PSP), um político corrupto”, explica Cavalheiro, citando o ex-governador paulista que inaugurou o ditado de que “rouba, mas faz”.

Com esse histórico, recheado por lutas e ideais, Carlos Cavalheiro considera que hoje o prêmio Salvadora Lopes, dado anualmente pela Câmara Municipal de Sorocaba desde 2006, não faz jus ao nome da operária. “Se ela estivesse viva, ela não estaria recebendo este prêmio”, rechaça o historiador, que reclama a falta de mulheres ligadas a movimentos sociais recebendo o prêmio que leva o nome de uma das principais expoentes da luta operária sorocabana no século 20. “É uma apropriação da memória dela, mas com uma inversão de valores”, sentencia.

De acordo com a Câmara Municipal de Sorocaba, o prêmio Salvadora Lopes destina-se “a agraciar mulheres que se destacaram na luta pela cidadania e na defesa dos direitos da mulher”. A solenidade geralmente acontece nas proximidades ao Dia Internacional da Mulher (8 de março) e contempla cinco mulheres de diferentes áreas que são selecionadas através do Conselho do Diploma Mulher-Cidadã Salvadora Lopes, composto por um representante de cada partido político com assento na Câmara Municipal que selecionam as apreciadas através da análise de seus currículos e justificativas apresentados à mesa diretora da Casa. Nos últimos anos, juízas, secretárias de governo, vereadoras, empresárias e diretoras de entidades foram homenageadas pelo prêmio. “Eu não estou desfazendo destas personalidades, mas questiono o fato de não ter uma sindicalista, e Salvadora era sindicalista, e nenhuma participante de movimento social recebendo o prêmio”, afirma o historiador.

Para ele, a falta dessas representantes é, na verdade, apenas a reafirmação da carência de lideranças femininas no legislativo sorocabano. “E quando a gente pensa em representação feminina, não estamos falando apenas em mulheres, mas uma representação que defenda de fato as mulheres”, ressalta Carlos. Desde que o Diploma Mulher-Cidadã Salvadora Lopes foi instituído, em 2006, apenas duas mulheres assumiram cargos na Câmara Municipal de Sorocaba, Neusa Maldonado (PSDB) e Tânia Baccelli (PT). Considerando então o processo que elege as cinco figuras agraciadas com o diploma, pode-se afirmar que sequer há representação feminina o suficiente no “júri” de um prêmio que tem como objetivo homenagear as próprias mulheres.

Apesar de ter sido uma liderança feminina praticamente rara em meados do anos 40, Carlos Cavalheiro é cauteloso ao caracterizar Salvadora como uma defensora do empoderamento das mulheres. “Ela sempre foi uma pessoa que lutou pela classe operária indistintamente. Agora na condição de mulher ela sabia, principalmente por viver aquela realidade, que o sexo feminino tinha uma condição desfavorável em relação aos homens dentro da sociedade. Isto estava claro para ela”, pondera o historiador que, no entanto, não rechaça o título de ícone feminista que a sua biografada recebe atualmente. “A Salvadora é um ícone para as mulheres por conta da coragem que ela teve de botar a cara pra bater e ir à luta dentro de uma sociedade do interior paulista, bastante conservadora e patriarcal, como é até hoje.”

Salvadora Lopes também dá nome a um curso pré-vestibular sorocabano da “Rede Emancipa”, a um coletivo feminista das alunas da Faculdade de Direito de Sorocaba (FADI) e ao Salão Nobre da Câmara dos Vereadores. “Todos eles são frutos do livro”, orgulha-se Cavalheiro, com a sensação de dever cumprido ao ver sua biografada e amiga dando nome a entidades que conseguem manter seus ideais. “Eu fico feliz em ver que o livro teve esses desdobramentos mas, mais que isso, ter conseguido dar a ela o reconhecimento em vida.”


 
 
 

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